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Mario Persona

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ESTUDO NO LIVRO DE GÊNESIS


ESTUDO NO LIVRO DE GÊNESIS

Preparado pelo Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho, para a IB Nova Vida, Valparaíso, GO, pastoreada pelo Pr. Isaías Gomes Coelho e apresentado em 3.1.10

INTRODUÇÃO

É difícil apresentar um panorama de Gênesis em apenas uma aula. É um livro extenso (50 capítulos) e com muito material, não pela extensão, apenas, mas pela riqueza de seu conteúdo. Alguma coisa será sacrificada. Analisando meus arquivos, vi que é o livro do AT em que mais prego, exceção à Salmos, onde fiz uma série de estudo na IB do Cambuí, tendo chegado ao Salmo 150. É óbvio que há mais mensagens em Salmos. Mas Gênesis é fascinante. É o começo. Do mundo, de Israel, da história da salvação. Para se entender bem toda a mensagem da Bíblia não se pode perder Gênesis de vista. Andaremos por aqui, nestas duas noites. Vou me deter mais na primeira parte do livro. A segunda, que é histórica, analisarei do ponto de vista da teologia do livro.

1. TÍTULO E TEMA – Gênesis é uma palavra grega que vem da Septuaginta (o Antigo Testamento traduzido para o grego) e significa “princípio”, “origem”, “nascimento”. O título em hebraico é Bereshith , uma palavra composta: Bê (“na”) e reshit. Esta palavra deriva de rosh, literalmente, “cabeça”, e o sufixo it, com a idéia de algo indefinido. Por isso o nome é entendido como “princípio”. São as duas primeiras palavras do livro, significando “no princípio”. O livro trata dos princípios, e daqui já vem seu tema: o princípio da criação do mundo, o princípio da história da salvação (a partir do capítulo 12) e o princípio de Israel, com o surgimento da família eleita.

2. ESBOÇO BÁSICO – O livro tem duas grandes divisões, cada uma com quatro subdivisões. Há quatro eventos de destaque, na primeira parte, e quatro pessoas de destaque, na segunda parte:.

I. História primitiva da raça humana – 1 – 11

(1) A Criação – início do universo ………………………. 1 – 2

(2) A Queda do Homem – início do pecado……………. 3 – 4

(3) O Dilúvio – início do julgamento ……………………. 6 – 9

(4) A Torre de Babel – início das raças…………………. 10 – 11

II. História patriarcal da raça hebraica - 12 – 50

(1) Abraão – chamada sobrenatural ……………………… 12.1 – 25.18

(2) Isaque – nascimento sobrenatural…………………….. 25.19 – 28.9

(3) Jacó – cuidado sobrenatural …………………………. 28.10 – 36.43

(4) José – controle sobrenatural …………………………. 37.1 – 50.26

Há dois grandes limites no livro. O homem começa num jardim (1.15) e termina um caixão (50.26). Começa aonde Deus o colocou e termina aonde seus pecados o puseram, na morte. A última palavra do livro é “Egito” (no hebraico, Mizraim, o nome hebreu do Egito), sendo um gancho para o livro a seguir, Êxodo. Isto indica que o autor dos dois livros é o mesmo. Quem escreveu Gênesis escreveu Êxodo.

3. AUTOR – Apesar de Gênesis não reivindicar a autoria de Moisés, tudo parece indicar que ele escreveu o livro (Êx 17.14; 24.4,7; 34.27-28); Nm 33.1,2; Dt 31.9,24-26). Hoje a crítica liberal nega veemente esta posição. Mas a crítica liberal nega tudo, afinal.

4. DATA DA REDAÇÃO – É provável que o livro tenha sido redigido cerca de 1440 a.C., no início da peregrinação do povo pelo deserto entre Egito e Canaã. Pode ser que tenha sido escrito durante os 40 anos que Moisés passou no deserto de Midiã antes de sua chamada divina junto à sarça ardente. Educado em toda a sabedoria do Egito, ele teve acesso a muitos documentos e registros da história antiga da humanidade. Que ele usou documentos vê-se em algumas passagens, nas quais aparece a expressão toledôth (“estas são as gerações”), mostrando que ele se valeu de informações que pesquisou.

5. EXTENSÃO HISTÓRICA E GEOGRÁFICA – Gênesis começa com a criação do universo e do homem e termina com a família eleita chegando ao Egito. A extensão geográfica vai do Vale da Mesopotâmia, conhecido como o berço da raça humana, até o Vale do Nilo no Egito, o berço da raça hebraica. Essa área é conhecida como o “Crescente Fértil”. Três continentes, Ásia, África e Europa, convergem neste “centro da terra”. O símbolo do Islã é uma lua crescente, recordando o surgimento da civilização árabe nesta região.

6. CENÁRIO RELIGIOSO – Antes do dilúvio, o monoteísmo prevaleceu quase que universalmente. A insolência e rebelião humana provocaram os castigos divinos do dilúvio e da confusão de línguas na torre de Babel (Gn 6.5-6,11-12; 11.4,8) com a subseqüente dispersão dos povos, que na época de Abraão, uns 2.000 anos após Adão, já praticavam a idolatria (Js 24.2,14-15). Com Abraão, Deus fez um novo começo no seu plano de salvar o homem. É a chamada história da salvação. Em 12.1 começa a história da salvação. Lembremos que Jesus referiu-se várias vezes a Abraão, o pai da nação israelita. Mas o contexto das palavras de Jesus não era racial, mas espiritual, em termos de salvação.

7. RELACIONAMENTO COM O PENTATEUCO – “Pentateuco” é o nome que se dá aos cinco primeiros livros da Bíblia, atribuídos a Moisés. Eles mostram ser uma unidade composta para um determinado fim educacional ou teológico. Os cinco primeiros livros da Bíblia não são uma colcha de retalho, mas guardam ligação entre si. É assim que os cinco livros se relacionam entre si:
LIVRO CONTEÚDO IDÉIA CHAVE DEUS HOMEM
Gênesis Origens e patriarcas hebraicos Princípios Soberania Queda
Êxodo Livramento do Egito; Tabernáculo Libertação Poder Redenção
Levítico Regulamentos religiosos e morais Legislação Santidade Comunhão
Números Peregrinação no deserto Provação Severidade Orientação
Deuteronômio Repetição da Lei Recordação Fidelidade Destino

8. RELACIONAMENTO COM APOCALIPSE – Existem elos muito fortes entre o primeiro livro da Bíblia e o último. Aliás, Apocalipse 21 é a continuação de Gênesis 2. É a vida do homem sem o pecado. Todo o enredo da Bíblia gira ao redor do capítulo 3 de Gênesis.

(1) Semelhanças – “Temos em ambos um novo começo e uma nova ordem. Observamos em ambos a árvore da vida, o rio, a noiva, a caminhada de Deus com o homem; em ambos os paraísos vemos os mesmos ideais nos campos moral e espiritual. Deus jamais abandonou o ideal do Éden para o homem; embora no final o jardim tenha dado lugar à cidade, o ideal de santidade do Éden finalmente triunfa”.

(2) Contrastes – “Em Gênesis vemos o primeiro paraíso fechado (Gn 3.23); em Apocalipse vemos o novo paraíso aberto (Ap 21.25). Em Gênesis o pecado humano resulta em expulsão (Gn 3.24); em Apocalipse a graça divina produz reintegração (Ap 21.24). Em Gênesis lemos sobre a ‘maldição’ imposta (Gn 3.17); em Apocalipse ela é removida (Ap 22.3). Em Gênesis, o acesso à árvore da vida é vetado em Adão (Gn 3.24); em Apocalipse vemos o acesso à árvore da vida recuperado, em Cristo (Ap 22.14). Em Gênesis vemos o começo do sofrimento e da morte (Gn 3.16-19); em Apocalipse lemos que ‘a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor’ (Ap 21.4). Em Gênesis nos é mostrado um jardim em que entrou a corrupção (Gn 3.6-7); em Apocalipse nos é mostrado uma cidade, sobre a qual é escrito: ‘Nela nunca jamais penetrará coisa alguma contaminada’ (Ap 21.27). O homem perde o domínio em Gênesis, por causa da queda do primeiro homem, Adão (Gn 3.19); vemos esse domínio restaurado em Apocalipse, sob o reino do Novo Homem, Cristo (Ap 22.5). Em Gênesis vemos triunfar a maldade da serpente (Gn 3.13); em Apocalipse contemplamos o triunfo final do Cordeiro (Ap 20.10; 22.3). A caminhada de Deus com o homem é interrompida em Gênesis (Gn 3.8-10); em Apocalipse Deus volta a andar com ele, e uma grande voz proclama dos céus: ‘Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles…’ (Ap 21.3)”.

(3) Complementação – “O jardim, em Gênesis, dá lugar à cidade, em Apocalipse; e o homem que estava sozinho se transforma numa raça. Vemos em Gênesis o pecado humano em seu começo; no livro de Apocalipse observamos seu desenvolvimento pleno e final, na Meretriz, no Falso Profeta, na Besta e no Dragão. Em Gênesis vemos o pecado provocando a morte física na terra. Em Apocalipse vemos o pecado nas trevas terríveis da ‘segunda morte’, no além. Lemos em Gênesis sobre a sentença pronunciada contra Satanás; no Apocalipse a sentença é executada. A primeira promessa de um Salvador e da salvação futura é dada em Gênesis; em Apocalipse vemos essa promessa em seu cumprimento final e glorioso. Gênesis provoca expectativa; Apocalipse produz a realização. Gênesis é a pedra fundamental da Bíblia; Apocalipse é a sua cimalha”. (Examinai as Escrituras - Vol. I de J Sidlow Baxter)

9. CRIAÇÃO – “No princípio criou Deus os céus e a terra” -. No princípio…DEUS – Esta afirmação das Escrituras (Gn 1.1; Cl 1.16-17; At 17.24-28) elimina todas as hipóteses como:

1) Politeísmo – a filosofia da pluralidade de deuses (Animismo, Hinduísmo, etc.);

2) Dualismo – a filosofia de dois princípios irredutíveis, um deus do bem e um deus do mal (Zoroastrismo);

3) Materialismo/Naturalismo – a filosofia segundo a qual todo conjunto de fenômenos pode ser reduzido, por um encadeamento mecânico, a fatos do mundo concreto material sem a intervenção de nenhuma causa transcendente;

4) Panteísmo – a filosofia segundo a qual só Deus é real e o mundo é apenas um conjunto de manifestações ou emanações de Deus; isto é, Deus é o mundo (a natureza); o mundo (a natureza) é Deus.

A figura de Deus domina o primeiro capítulo da Bíblia, pois seu nome aparece 35 vezes nos 34 versículos. A palavra no hebraico traduzido por “Deus” em Gênesis 1.1 a 2.3 é Elohym. Esta palavra está na forma plural, mas não obstante é sempre acompanhada com o verbo no singular. Isto tem dado margem a muitas especulações, mas é fácil de compreender. Elohym é o plural de El, que significa “forte”. No hebraico, o plural serve para manifestar intensidade, fazendo o papel de superlativo, “fortíssimo” ou “muito forte”. Como o hebraico não tem superlativos, usa o plural para fazê-lo. Por isso, a palavra Elohym indica a majestade, o poder infinito e a excelência de Deus. Ele possui completamente todas as perfeições divinas.

Em Gênesis 2.4-25, o título empregado é Iahweh Elohym. Aqui a ênfase está num Deus pessoal, um Deus de pacto, de graça, de misericórdia, embora o nome Iahweh acrescenta também que Deus é eterno e tem existência ilimitada em si mesmo (Êx 3.14).

10. A CRIAÇÃO DO UNIVERSO – As evidências de grandes mudanças geológicas, estratificação de massas de rochas sedimentares, carbonificação da crosta terrestre, acumulação de sal no oceano, e outros indícios levam os cientistas à conclusão que a terra é antiqüíssima, tendo entre muitos milhões de anos de existência. A ciência mostra que são necessários mil anos para acumular 30,5 cm de rocha estratificada. Será que há contradição entre a ciência e as cronologias bíblicas? Ao interpretar a narrativa da criação, temos que tomar em conta certos princípios:

1) Gênesis não apresenta datas.

2) As genealogias são representativas, não exaustivas. As genealogias dadas em Gênesis 5 e 10 não podem ser usadas para efetuar cálculos da idade da humanidade, pois existem lacunas nelas.

3) A Bíblia não é um livro científico ou técnico. Ela foi escrita em termos e conceitos compreensíveis aos homens daquela época; porém ela nunca contradiz a ciência (Veja Josué 10.12-15 e Isaías 40.22). Não devemos dar á Bíblia o caráter de um livro científico. Isto não significa que ela erra. Significa que ela é a revelação de Deus para nossa vida, e não um tratado científico.

11. TEORIAS SOBRE A CRIAÇÃO –

A criação do universo seguiu a seguinte ordem:

1º dia – Luz (dia e noite) (1.3-5) 4º dia – Corpos celestes (sol, lua) (1.14-18)

2º dia – Céu, atmosfera, mares (1.6-8) 5º dia – Animais do mar, aves (1.19-23)

3º dia – Continentes, vegetação (1.9-13) 6º dia – Mamíferos e o homem (1.24-31)

7º dia – Deus descansou (2.1-3)

Uma questão bastante discutida é o que significa a palavra “dia”, em hebraico, yom. Há várias sobre seu significado.

1. Teoria dos dias em termos da revelação – Os dias de Gênesis não se referem à criação mas ao tempo que passou enquanto Deus revelou a história da criação e Moisés a escreveu. Dificuldade – força muito a narrativa de Gênesis 1 e 2.

2. Teoria do vazio ou arruinamento e a nova criação – Teria havido uma criação perfeita no passado distante (Gn 1.1), seguida de uma grande catástrofe ocorrida entre Gênesis 1.1 e 1.2, a qual deixou a terra desolada e em caos (Jr 4.23-26; Is 24.1; 45.18). A ruína da terra teria sido o resultado do juízo divino quando Satanás e seus anjos caíram (Ez 28.12-15; Is 14.9-14; 2Pe 2.4; Jd 6; Lc 10.18; Ap 12.9-13). A frase “sem forma e vazia” poderia ser traduzida “veio a ser algo caótico e vazio”. Neste vasto período de tempo entre Gênesis 1.1 e 1.2 aconteceram os fatos pré-históricos. Depois deste cataclismo, a terra foi criada (recriada, reformada) de novo em seis dias literalmente de 24 horas cada. A dificuldade é que esta teoria é altamente especulativa, fazendo vínculos bíblicos que dificilmente podem ser justificados pela Hermenêutica, a ciência que trata das regras da interpretação da Bíblia. E a possibilidade da tradução é secundária, remota, e não a principal tradução. Os gramáticos mais sérios não levam isto a sério.

3. Teoria da criação progressiva - A palavra yom não deve ser usada literalmente, pois Gênesis 1 e 2 são uma descrição poética dos passos sucessivos da criação, representando eras de tempo indefinido, ou seja, épocas geológicas, nas quais Deus paulatina e progressivamente criou. “Manhã” e “tarde” referem-se ao começo e fim de cada período (Veja 2Pe 3.8; Sl 90.4; “dia” em Gênesis 2.4). Dificuldade – Alguns argumentam que os corpos celestes (Sol, Lua, etc.) foram criados somente no 4º dia, e se dias representam épocas, como poderiam existir plantas na 3ª era geológica (Gn 1.12)? Mas sem dúvida que a questão é esclarecida ao se analisarem os termos hebraicos. O termo empregado para o Sol e a Lua, no quarto dia, não é criar (barah, de 1.1), mas yehy “fazer surgir”. Pode se explicar com o argumento de que tinham sido criados na primeira era, mas só se tornaram visíveis no quarto dia, após o esfriamento do planeta. A narrativa não é científica e é feita de alguém que está no planeta.

4. Teoria da alternância dia-era - Os seis dias de atividade criadora foram períodos de 24 horas literalmente para cada dia, mas estes foram separados por vastas eras geológicas. Dificuldade – mesma da teoria anterior, com a agravante de que na nenhuma indicação de que o texto assim deva ser lido ou traduzido.

5. Teoria da catástrofe universal causada pelo dilúvio - Os dias da criação foram literalmente dias de 24 horas. As grandes modificações geológicas, a estratificação das rochas e as jazidas carboníferas e petrolíferas podem ser explicadas pelo cataclismo do dilúvio causado por uma alteração na posição do eixo da terra que por sua vez causou o rompimento da camada de água que existia em volta da terra (Gn 1.6, 8.2; Pv 8.27-30). Provas desta posição são os fósseis animais intactos achados nas estratificações das rochas e troncos de árvores de 3 metros de altura achados em pé em jazidas carboníferas. Mamutes na Sibéria foram preservados congelados na neve, que mostram pelo alimento encontrado na boca que houve uma mudança drástica, repentina, que poderia explicar a origem das rochas, etc., que parecem indicar uma idade bem antiga para a terra. Esta posição parece ser uma maneira de acomodar o relato, vendo-o de forma literal, com as informações científicas, as quais impedem sua leitura literal.

A teoria número 3 parece ser a mais sensata. Devemos reembrar que Gênesis não pretende ser um relato científico, mas uma explicação do mundo de maneira que a cultura destinatária a entendesse, e redigida nos termos daquela cultura.

12. A ORDEM DA CRIAÇÃO – Há duas palavras hebraicas traduzidas pelo verbo “criar” , em português.

(1) Barah – usada em Gênesis 1.1,21,27 (Veja também Is 45.7-8,12,18, etc.); Barah é usado exclusivamente para designar uma atividade divina. Nunca é um ato humano. Em outras palavras, é um termo que só se usa com relação a Deus.

(2) Asah – significa “fazer de coisas já existentes” (Gn 1.7,16,25-26,31; 2.2-4,18; 3.1). Assim o Espírito (ruah, que também significa “vento” ou “sopro” estava sobre o que foi criado, e fez forma e ordem da matéria mediante a palavra poderosa de Deus (“E disse Deus…E assim foi”). Tudo foi “bom” (Gn 1.4,10,12,18,21,25), até “sobremaneira bom” (Gn 1.31), mostrando equilíbrio e ordem, menos o homem sozinho (Gn 2.18).

A arqueologia tem descoberto nas ruínas de Nínive, Babilônia, Nippur e Ashur várias epopéias da criação que existiam em formas diferentes, escritas em tabletes, antes do tempo de Abraão. Todas são grossamente politeístas, mas mostram bastante semelhança com o relato de Gênesis, indicando uma origem comum. As sete placas de Enuma Elish e as doze placas da Epopéia de Gilgamesh se encontram entre estas. Isto pode explicar uma memória comum à raça, que acabou sendo amoldada pelas diferentes culturas religiosas.

13. A CRIAÇÃO DO HOMEM – “Façamos…nossa imagem…nossa semelhança…criou, pois, Elohym o homem…á imagem de Elohym o criou, homem e mulher…” (1.26-27). Alguns querem ver aqui a Trindade fazendo uma consulta entre si antes de fazer a coroa da criação. Seria um nó enorme na cabeça de Moisés a idéia de uma Trindade, sabendo-se que os hebreus são, ainda hoje, rigorosamente unitários (lembre-se da xemá, em Deuteronômio 6.4). É mais acertado ver aqui um estilo literário, tipo plural majestático. Há dois aspectos interessantes neste relato da criação:

(1) Ambos, homem e mulher. foram criados na imagem de Deus; quer dizer, Deus é ambos, macho e fêmea. Não há superioridade da parte do homem sobre a mulher quanto à imagem de Deus que está em cada um (Gn 2.27). A diferença se dá apenas no aspecto da formação (não criação – Gn 1.27) do corpo físico e na ordem cronológica desta formação, o homem sendo formado primeiro do pó da terra, e a mulher formada mais tarde, tirada do corpo dele. Veja bem que Gênesis 1.27 usa a palavra “criar” (barah em hebraico, que significa criar como ato divino e nãodo nada, pois o homem foi criado do pó da terra e a mulher, do homem), enquanto Gênesis 2.7 usa a palavra “formar” (yatsar, em hebraico, que significa moldar num molde como um oleiro, formar, modelar) e Gênesis 2.22 usa a palavra “formar” (banah, em hebraico que significa construir, reconstruir, estabelecer). A palavra “façamos”, em Gênesis 1.26, no hebraico é asah, que significa, simplesmente, “fazer”, sem mais detalhes..

Não há lugar no relato da criação pelo machismo que acha que o homem é superior à mulher. O machismo encontra sua força em Gênesis 3.16 onde a Bíblia indica que um aspecto da maldição que caiu sobre a mulher por causa do pecado foi que “ele te dominará”. Mas esta maldição foi tirada por Jesus Cristo (Gl 3.13) de forma em que na igreja cristã não há mais lugar para o machismo. Gálatas 3.28 ensina claramente que “não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”. Foi o evangelho de Jesus Cristo que libertou e devolveu à mulher seu devido lugar de igualdade ao homem, o que não acontece nas outras religiões como o Islamismo, Hinduísmo, etc.

Segundo Gênesis 2.18, a mulher é a “ajudadora” (ezer, no hebraico, significando “o que dá socorro, normalmente no sentido de ser mais forte do que aquele que precisa de socorro”) “idônea” (negdô, no hebraico, significando “contraparte, a parte oposta defronte ou diretamente em frente”). Tudo isso significa claramente que a mulher é a completadora, a contraparte, aquela que responde ou corresponde ao homem, aquela que está defronte do homem, aquela que preenche o espaço vazio do homem (não uma referência ao estômago dele). A Septuaginta, o Antigo Testamento grego, usa a palavra parácletos, na tradução da palavra “ajudadora”, a mesma palavra traduzida como Ajudador, em João 16.7, em referência ao Espírito Santo. A NVI traduz como “Conselheiro”. Seria bom se os maridos vissem suas esposas como conselheiras.

(2) O homem e a mulher foram feitos na imagem de Deus, não fisicamente, mas em termos de alma e espírito (Gn 2.7) “Adão” em hebraico significa “homem, ser humano”, Na realidade, o termo hebraico é coletivo e designa mais “humanidade”. E deriva de adamah, que significa “solo”. Eva vem de Hawwa, “vida”. Uma outra palavra hebraica ish, também significa “homem, marido, indivíduo”, e a palavra hebraica ishshah, que significa “mulher, esposa” vem desta raiz. Deus “formou…do pó…soprou…o fôlego da vida; e o homem tornou-se alma vivente”. Como ishsha, ela deriva dele e precisa dele para existir. Como Adão e Eva, é ele quem precisa dela, pois a humanidade não sobrevive sem a vida. O princípio bíblico não é de competição nem de dominação, mas de solidariedade. Lembremos 1Coríntios 11.11. Mas estas considerações sobre o homem feito na imagem de Deus, mostram quatro características que o homem tem e que são superiores às dos animais:

1) tem um espírito imortal;

2) é um ser moral com consciência e livre arbítrio;

3) é um ser racional que pensa no abstrato e forma idéias em vez de agir apenas por instinto como os animais;

4) tem domínio sobre a natureza e os seres vivos.

14. A IDADE DO HOMEM – Há pelo menos 120 cálculos diferentes feitos por cristãos quanto ao tempo em que o homem tem existido na terra. Alguns colocam a data de cerca de 9.000 anos antes de Cristo; a LXX Alexandrina datou 5.508 a.C.; Josefo calculou 5.555 a.C.; o Talmude indicou 5.344 a.C.; Lutero raciocinou 3.961 a.C. O mais famoso cálculo foi feito pelo Arcebispo James Usher, colocando a criação do homem no ano 4004 a.C. Todos se basearam em calculos das genealogias, esquecendo-se de que a Bíblia não é depósito de relatos genealógicos, limitando-se aos vultos mais importantes, e omitindo os desnecessários ao seu propósito, que é o de mostrar a salvação prometida por Deus.

15. O PRIMEIRO ANÚNCIO DO EVANGELHO – Proto-evangelho é como se chama o texto de Gênesis 3.15. Um descendente da mulher, um humano, portanto, um dia esmagaria a cabeça da serpente, que é Satanás (Ap 20.2). “Semente” é o hebraico zerah, que é masculino, indicando que “o semente” da mulher esmagaria a serpente, um filho homem, portanto. Eva pensou que fosse Caim, porque seu nome significa “Eis! Um homem!”. Presumiu que já havia chegada o vencedor da Serpente. Não sabia ela que milhares de anos se passariam até que isto acontecesse, com Jesus Cristo.

16. A ALIANÇA – A partir daqui, caminharemos nesta direção: a aliança de Deus com os homens. Anuncia-se o evangelho, em Gênesis 3. Em Gênesis 8 vem a aliança feita com Noé. A partir de Gênesis 12 vem a aliança com Abraão. Não vejo duas ou mais alianças, no Antigo Testamento, mas apenas uma: o desejo de Deus se relacionar com os homens e abençoá-los. Esta aliança se desdobra, amplia-se ao longo da Bíblia, e termina nas palavras de Jesus, na ceia: “Este cálice é a nova aliança no meu sangue, derramado em favor de vocês” (Lc 22.20). Mas vejamos o conceito de aliança, em Gênesis, e os desdobramentos que seguem.
17. A ALIANÇA COM NOÉ – Está em 8.20-9.17. A aliança vem logo após o dilúvio. A criação fizera do caos um cosmos. O dilúvio faz do cosmos um caos. A primeira foi ação divina. A segunda é ocasionada pelo pecado (6.13). Em 6.18 há a primeira menção bíblica a pacto. É o hebraico berith. É traduzido por aliança, pacto, concerto, etc. Kaiser, Von Rad e Baxter preferem “aliança”. Crabtree, por sua vez, “concerto”, e dá uma excelente explicação em sua Teologia Bíblica do Velho Testamento. (na 4a. ed., p. 192). A VR traduz por “pacto”. Segundo Weinfeld, “o sentido original do hebraico berith não é um acordo ou estabelecimento entre duas partes, como costumeiramente se declara. Berith implica primeiro, e acima de tudo, na noção de imposição, sujeição ou obrigação”. É algo que é trazido unilateralmente e não comporta discussões. Não é para sentar-se à mesa e discutir cláusulas. Por aquilo que Deus fez, ele tem o direito de dizer o que é e o que deve ser feito, sem discutir termos. Esta noção de berith deve ser guardada. Ela vai servir de fio de prumo para toda a nossa abordagem do Antigo Testamento. Concordo com as palavras do rabino Kushner, no livro Quem Precisa de Deus?: “Para mim (e, afirmarei, para a Bíblia, a essência de um relacionamento religioso com Deus está na idéia contida na Aliança” (p. 67).

O texto inicia com um ato de culto. No entanto, não é este que motiva a aliança. Esta começa na graça de Deus (6.8). O caráter de Noé agradou a Deus (6.9). A obediência é mostrada como um traço do seu caráter (6.22, 7.5, 7.9 e 7.16). A moralidade de Deus o leva ao desgosto (6.11-13) e, também, à eleição que produz o pacto (6.18). Um princípio se estabelece, o da obediência: 6.22. O ato de culto de nosso texto é resposta de gratidão à salvação. “Holocaustos” (Gn 8.20) é o hebraico ‘olah, que significa “oferta inteiramente queimada”, a mais expressiva no AT. É uma oferta de gratidão e não o motivo da aliança. Alguns vêem uma aliança pré-diluviana e uma pós-diluviana, com Noé. É melhor ver uma só, que antes se expressa em termos de salvação temporal e depois, em termos de bênçãos futuras. A aliança com a Igreja é de uma salvação imediata e uma futura, sem ser duas. A analogia pode ser feita. A Igreja adora não para fazer a aliança, mas porque ela foi feita por Cristo, com seu sangue.

18. AS BASES DA ALIANÇA – Não é um contrato bilateral, conforme já dissemos, com as partes firmando o acordo, após discussão e acerto de cláusulas. Uma tradução literal de 9.9 nos dá: “Eu, eu mesmo, estabeleço o meu pacto convosco”. A ênfase é na ação divina, mostrando o pacto como algo unilateral. Há três características a notar nesta aliança:

1ª) Foi concebida e firmada pelo próprio Deus. Ele é o agente. Noé providencia a arca, mas a revelação vem de Deus e a orientação também. Deus é o sujeito das ações. Julga, mas é longânimo, dando prazo para que a pregação de Noé fosse ouvida. Independente do que seja a interpretação do texto, 1Pedro 3.20 nos diz que a “longanimidade de Deus esperava, nos dias de Noé”. O juízo é por causa da moralidade divina, mas houve espera e pregação. 2Pedro 2.5 fala de Noé como “pregador da justiça”. Houve graça, também.

2ª) A aliança era universal em seu alcance. Gênesis 9.9 fala de “vossa descendência”, mas 9.16 fala de “todo ser vivente de toda a carne”. A graça é manifestada mesmo sem haver compreensão dela. A graça tem uma dimensão universal e é sobre toda a criação.

3ª) A aliança era incondicional. Não há nenhum “se”. Cumprindo o homem o que se espera dele ou não, não haveria mais juízo por água. Haveria um dilúvio só em toda a história. Nada há que o homem faça que possa provocar novo dilúvio. Nada há que o homem faça que possa invalidar o juízo. Até o sinal da graça independe de ação humana nem pode ele exercer qualquer controle sobre ele. É dada, independente de aceitação.

Isto nos ajuda a entender que a aliança com Noé foi produto de uma administração soberana da graça e da magnanimidade divinas, em sua origem, manifestação e cumprimento. O sinal dado aos homens, o arco-íris, recebeu uma boa interpretação de Von Rad: Deus pôs de lado seu arco de guerra. A convexidade do arco-íris, diferentemente da do arco de guerra, está voltada para o céu e não para a terra. É uma oferta de paz. Trata os homens, na sua aliança, como amigo e não como guerreiro. A aliança é uma promessa de bênção, de segurança e uma oferta de paz. Cabe ao homem aceitar ou rejeitar. Discutir termos ou impor posições não é possível. A aliança não é dialogável, passível de acertos e negociações. É uma oferta de amor, mas firme e decidida.

O contexto da aliança é, pois, uma oferta de paz, uma promessa de bênção, e é assegurado à descendência. Assim como o coração de todo homem é pecador (8.21), a aliança é ofertada a todos. Deus deseja se relacionar bem com todos os pecadores e lhes estende a sua graça. É a mensagem da aliança. É um ato soberano de sua vontade e não mérito humano.

Uma boa observação de S. de Diétrich, mais uma vez:

A arca de Noé, sacudida e levada pelas águas do dilúvio, é um sinal da salvação futura, sinal da Igreja arrebatada à perdição do mundo (1Pe 3.21). Talvez possamos ver nela um prenúncio da Nova Criação. Deus faz com Noé um pacto de aliança: compromete-se a não destruir mais a humanidade… O pacto com Noé é uma promessa de conservação, de manutenção da vida, feita à humanidade inteira ( p.25).

A arca é vista por Diétrich como um símbolo da Igreja: tomada do mundo, guardada por Deus, conservando o povo em si e preparando para um novo tempo.

19. A ALIANÇA COM ABRAÃO E SEUS DESDOBRAMENTOS – A salvação foi idealizada na eternidade (Ef 1.4), mas entrou na história em Gênesis 12. Temos, a partir daqui, “a história da salvação”. Ela sai da mente de Deus e entra na experiência dos homens. Um descendente de Sem (11.10-32) é o homem escolhido. Avraham é seu nome. O nome significa “pai elevado”. É de linhagem nobre. Deus escolhe um homem. Dele faz uma família. Depois, um clã. No livro de Êxodo, já é um povo, o povo de Israel. Depois de um cativeiro, de uma purificação (uma passagem pelo funil), sobra um “resto”, que dará origem ao messias. No Novo Testamento, esse povo é multirracial, multiétnico, a Igreja de Cristo.

A Igreja era o projeto final, à luz de Efésios 1.4. Israel era um estágio. A Igreja é o definitivo e Israel, transitório. Apesar de Calvino dizer que a Igreja começou no Éden (havia gente criada para viver com Deus, um símbolo da Igreja) as raízes teológicas da Igreja têm que ser buscadas em Abraão. Isso deduzimos de Gálatas 3.6-9. Somos, como Igreja de Cristo, descendentes deste homem. É nele que se localiza, teológica e historicamente, a nossa origem.

20. A CHAMADA – Está em Gênesis 12.1-3. Há um paralelo da história da salvação com a história da criação. Esta começa com Deus falando (Gn 1.3). Aquela também (Gn 12.1). É a palavra de Iahweh que comanda a história. A aliança com Abraão é exigente. É um berith, como já vimos, sem espaço para diálogo. Há uma ordem (v. 1) e uma promessa (vv.2-3). A ordem traz os verbos no presente (v. 1 e 2b). As promessas trazem os verbos no futuro (vv. 2-3). Nada de concreto, a não a ser a palavra divina empenhada. Observe-se, na chamada, o fundamento da aliança de Deus com os homens: a ruptura com o passado e a proposta de uma nova vida. A resposta de Abraão foi a obediência (v. 4) a adoração (vv. 7-8: edificou altares). Em Gênesis 13.14-18, a promessa da aliança é ratificada. Mais uma vez, a resposta é um ato de culto (v. 18). Eis uma síntese de toda a aliança proposta por Deus aos homens: uma nova vida, promessas, obediência e atitude de culto.

21. A REAFIRMAÇÃO DA PROMESSA OU “A CONVERSÃO” DE ABRAÃO – A aliança é ratificada, de modo espetacular, em Gênesis 15. Talvez seja o momento climáxico da aliança abraâmica. O NT dirá que Abraão creu e se tornou o pai dos crentes (Gl 3.6-9). A alusão é com este momento. É o instante em que ele teve a justiça imputada (Gn 15.6). O momento assume grandeza a partir do versículo 9, quando a aliança é selada, juridicamente. O ato é jurídico e mostra Deus se obrigando a Abraão. Transcrevo aqui um trecho de S. de Diétrich. Longo mas proveitoso, como todo o seu livro. Atente-se para ele:

O capítulo 15 relata um episódio mais misterioso ainda. Deus conclui com Abraão um verdadeiro pacto, segundo o costume do tempo; era preciso que os dois contratantes passassem entre os animais esquartejados; aceitavam assim serem eles mesmos dilacerados como as vítimas, se infringissem seus compromissos. Aves de rapina, símbolo das forças malignas tentam se apoderar dos animais divididos. Abraão as afugenta. Angústia e trevas espessas o envolvem. Deus lhe revela os sofrimentos que se abaterão sobre sua posteridade. Depois, o próprio Deus passa entre os animais partidos sob a forma de uma chama (…) Deus somente é o fiador do Pacto firmado. Sua honra está engajada. E, quando a posteridade de Abraão romper o pacto, será o próprio Deus que, em Jesus Cristo, virá substituir a parte faltosa e pagar-lhe o preço da infidelidade. É já a sombra da cruz que desce sobre Abraão nessa noite de angústia (p. 38).

É fundamental saber que Iahweh é o fiador do pacto, ele só. Abraão não pode passar entre os animais partidos. Ele representa a humanidade que não tem como firmar nada com Deus. É Deus quem firma. Ele é o fiador. Declara, ao passar entre as partes, que aceita morrer se falhar com o homem. Quando o homem falha, ele se torna homem e morre no lugar dele. Esta é a mensagem de Gênesis 15, antecipando a obra da cruz. Deus dá a sua palavra e dá a palavra pelo homem.

22. A ALIANÇA NUM CONTEXTO DE JUÍZO – Gênesis 18 é um texto impressionante. Iahweh, em forma humana, dialoga com Abraão. Discutir se é uma pré-encarnação de Jesus, aqui, é ocioso. É funcionalizar as pessoas da trindade. São três anjos (v. 2) que Abraão hospeda. Dois vão para Sodoma (19.1) e o terceiro voltou ao seu lugar (18.33). Era o próprio Iahweh. Ele repreende a dúvida de Sara (v. 13) e reafirma a promessa de um filho (vv. 13-14). O contexto é de juízo, a partir do versículo 17. Deus não oculta o juízo. Pela primeira vez a aliança está associada com destruição e punição dos pecadores. Este tema estará bem presente na aliança do Novo Testamento. O Deus que pactua e se submete a atos jurídicos é, também, Juiz (18.25). Há promessas, na aliança, para a descendência de Abraão (que somos nós, à luz de Gálatas 3.29). Mas há juízo para os de fora. Os que não se submetem à aliança serão julgados (Jo 3.18).

23. UMA SÍNTESE DA ALIANÇA - A aliança repousa sobre três pilastras: Deus, o homem, a graça. Há um Deus vivo, que se comunica, que se revela a si mesmo. Os muitos antropomorfismos de Gênesis têm um sentido mais amplo do que um estilo antigo de linguagem. Pelo estilo se mostra a pessoalidade de Deus. Deus é pessoal, comunicativo e auto-revelador. Não revela conceitos, mas sua pessoa (15.1 e 17.1), pactua com os homens, ou seja, relaciona-se com eles em amor (17.5-8). O homem é pecador e nada faz pelo pacto. Em 15.17, é Deus quem afiança o pacto. É ele quem o faz (15.18) e não os dois. O homem é pecador e não pode oferecer nada como fiança. Nada tem. É fraco e não dita os termos. É um berith. Aceita ou recusa, sempre é bom reafirmar. A ação de Deus é ação da graça. Ele escolhe e não é o homem quem se capacita. A melhor exegese dos sentimentos de Deus quando do pacto está em Deuteronômio 7.7-8. Diz respeito a Israel, mas é óbvio que a origem está em Abraão. É o amor eletivo de Deus, a base da aliança. Entre os muitos termos hebraicos para amor, encontramos ‘ahab, que designa o “amor eletivo”. É diferente de hesedh, o amor eterno e imutável. Hesedh é geralmente o amor do pacto, o amor fiel e que permanece. Mas ‘ahab é o amor eletivo, o amor que se lê em Oséias 11.1. A aliança ou pacto tem seu ponto de partida no ‘ahab e se estabelece porque Deus tem amor eterno e imutável. Todo o relacionamento de Deus com o seu povo, seja na eleição, seja na continuidade do trato, é devido ao seu amor. Para mais informações sobre ‘ahab e hesedh , leia Crabtree, em Teologia do Velho Testamento, nos tópicos “O amor de Deus” e “O amor eletivo de Deus” (p. 114-117, na 4a. edição).

Mas a síntese da aliança precisa ser entendida num contexto de composição literária. Eis uma citação da apostila de Landon Jones, “O Kerygma do Pentateuco”, usada no mestrado da FTBSP:

A conseqüência da maldição em Gn 2-11 foi a perda de liberdade: a serpente foi condenada a viver no chão e foi alienada da humanidade. A terra foi amaldiçoada e só produzia espinhos. O homem e a mulher foram expulsos do jardim. Caim foi condenado a vaguear pela terra e Canaã seria o escravo de Sem. A torre de Babel foi vista como uma tentativa frustrada da humanidade de fazer um nome para si mesma. O resultado foi uma comunidade confusa e desunida. À luz desta situação, a promessa de bênção em Gênesis 12.1-3 deve ser vista como a promessa de “entrar numa vida livre e frutífera, sair da escravidão, do esforço vão e da peregrinação sem destino, da hybris e do temor da morte. Para Wolff a chamada de Abraão foi o início da história da reposição da maldição pela bênção (p. 22).

24. ABRAÃO, O MODELO PARA O CRISTÃO - Abraão, com sua fé e com seu testemunho, se torna o modelo para o cristão. Valham-nos aqui as palavras de Baxter:

Em Abraão vemos a vida de fé. Ele se destaca como o exemplo supremo da vida de fé. É o homem fiel que avança, confiante na orientação divina, crendo nas promessas divinas, recebendo as confirmações divinas, herdando a bênção divina, submetendo-se a grandes provações e, apesar de falhas ocasionais, sendo ‘justificado’ pela fé e chamado “amigo de Deus” ( Examinai as Escrituras, vol. I, p. 66).

Em Gênesis 22 a fé de Abraão alcança o apogeu. O texto nada tem a ver com a crucificação de Cristo. Isaque não é um tipo de Cristo, porque Cristo foi sacrificado e Isaque, não. Na realidade, o cordeiro emaranhado pelos chifres e que morre no lugar de Isaque tem mais a ver com Cristo do que o próprio Isaque. O capítulo mostra que Abraão alcançou a maturidade da fé. Houve altos e baixos em sua carreira. Mentiu para Abimeleque (e em vez de ser bênção, foi uma maldição para este – como lemos em 20.2-3, 17-18), desceu para o Egito (12.10), tomou Agar como reprodutora (16.4). Em Gênesis 22 ele aceita matar Isaque porque crê que Deus pode cumprir sua palavra. Não tenta “ajudar” a Deus, como fez no caso de Agar, nem teme, como no caso de Abimeleque. Apenas crê. Por isso a declaração do anjo em 22.12: “agora sei que temes a Deus”. É a essência do episódio, que não deve ser cristianizado para se ver a cruz no livro de Gênesis. O episódio tem a ver com Abraão e não com Jesus.

No pensamento de Paulo, o pacto de Iahweh com Abraão é fundamental para a fé cristã. É, inclusive, a principal base para a teologia paulina. Veja-se esta citação de Juan Stam:

A teologia abrâmica é a principal base bíblica (do Antigo Testamento) para Paulo. Uma vez que Abraão foi justificado pela fé, torna-se compreensível que nós também somos justificados pela fé (Rm 4.1-25, Gl 3.6-18, cf. Tg. 2.21-24). Os crentes, sejam judeus ou gentios, são agora verdadeiros filhos de Abraão (Rm 4.12, 9.68). Os gentios crentes são enxertados na oliveira de Israel, enquanto que os judeus incrédulos são arrancados da árvore (Rm 11.16-22). Tudo isto se deve a Cristo. (Steuernagel, A Missão da Igreja, p. 24).

25. A ALIANÇA RATIFICADA: ISAQUE E NÃO ISMAEL – Sara e Abraão desejaram “ajudar” a Deus no seu plano. Assim nasceu Ismael (Gn 16.1-3, 11). A história das tensões entre Sara, Agar, Isaque e Ismael dizem respeito mais à disciplina Velho Testamento. Nossa linha aqui é mais teológica. Pelo costume da época, sendo o escravo uma coisa, o filho de Agar seria de Sara. Abraão tinha 85 anos (Ismael nasceu quando ele tinha 86 – cf. 16.16). Ismael é ação de homens e não de Deus. A ação de Deus é Isaque (18.11-15 e 21.1-3). Há pouca exegese do VT sobre o caso, mas Paulo a fez muito bem, na sua alegoria sobre os dois pactos (Gl 4. 21-28). É a linhagem fiel e não a linhagem acidental (Agar era uma estranha). A aliança é depois ratificada em Jacó e não em Esaú, o primogênito. A explicação é dada em Gênesis 27.5-44. A história nos é estranha porque tem nuanças culturais que desconhecemos. Mas o NT dirá que Esaú foi leviano (Hb 12.16) por ter trocado a bênção de Deus por ninharia. Desprezou a eleição. Jacó a buscou. Por isso, a declaração de Deus em Malaquias 1.1-2. O verbo “amei” em Malaquias 1.2 é ‘ahab, usado para eleição. O amor eletivo de Deus está na base da aliança. Não é apenas uma questão de filiação, mas de eleição, da escolha soberana de Deus. É o seu querer que determina a aliança, isso deve ser repetido e bem gravado.

26. E JACÓ E JOSÉ? – Alguém perguntará: “E a bela história de José, e as peripécias de Jacó, como ficam?”. Bem, não ficam. Falta espaço. Mas a história de José mostra como a promessa de deus segue. Sua vida foi preservada para que a da família eleita fosse preservada, e a existência do povo fosse preservada, para que o Messias viesse. Cabe apenas uma observação: na parta alusiva a José, Gênesis não narra um só milagre. Há aspectos sobrenaturais, como o dom de José para interpretar sonhos, mas Deus parece estar agindo em segundo plano. Deus age para dar continuidade ao seu propósito e à sua promessa contida em Gênesis 3.15, e na promessa da aliança. Ressalto, em 50.20, o que se chama de “teologia da Providência”. Deus permitiu todos os dissabores de José, o ódio dos irmãos, sua venda como escravo, a calúnia da mulher de Potifar, o esquecimento do chefe dos copeiros, tudo isto. Mas “Deus estava com José”. Tudo dava errado, mas Deus estava com José. E dava mais errado, ainda. Mas em 50.20 temos a resposta. Se não houvesse sucedido tudo o que sucedeu, como seria a história? As melhores palavras aqui são as de Romanos 8.29: “Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito” (NVI).

CONCLUSÃO

Muito mais poderia ser dito, mas a finalidade não foi fazer um comentário de Gênesis, mas dar uma panorâmica de seu conteúdo e sua teologia. Assim, esperamos ter ajudado os irmãos a compreenderem um pouco mais deste livro, essencial para o conhecimento da Bíblia e da história da salvação.

Para a glória de Deus e o bem-estar de seu povo.